A curiosidade humana sempre pareceu levar a instância da criação. Essa é a lógica da própria ciência. Mas a ciência se afasta de toda e qualquer conclusão que se baseie no irreal por uma óbvia questão epistemológica. Essa mesma curiosidade, no entanto, produziu também formas fictícias de representações da realidade. As artes em geral foram por muito marginalizadas por essa conclusão ontológica a seu respeito: a de copiar a existência.
Porém as artes conseguiram seu lugar e valor. A produção humana de ficção saiu da
marginalidade e ganhou um caráter, em algumas ocasiões, erudito. As pinturas, esculturas, artesanato, e as artes da comercialização liquida, a música e o cinema. A literatura, a arte da palavra, se manifesta como um grande difusor e criador de ficções.
A ficção moderna surge na literatura não só como forma artística, mas também com uma finalidade de entretenimento. Dentro da literatura encontramos como seus principais gêneros o drama, comédia, terror, sátira, tragédia, tragicomédia, suspense, ficção científica e a fantasia, etc.
Esses dois últimos em específico parecem ser irmãos próximos, a fantasia e a ficção científica. Alguns autores vêm trabalhando e definindo esses dois gêneros como parte de uma ficção especulativa. Apesar de apresentar um caráter pejorativo por alguns, o termo surge como uma forma de melhor categorizar a ficção científica. Porém, é utilizado atualmente parar definir o gênero que especulam sobre realidades possíveis, que distorcem em algum grau a real realidade. No caso seria tanto a ficção científica, a fantasia e o horror. A literatura fantástica cabe a mesma função da ficção especulativa, porém a primeira é melhor reconhecida academicamente, enquanto a segunda não, chegando a ser crítica por Asimov como um termo redundante.
Não nos cabe aqui discorrer sobre uma definição sobre a ficção científica, visto que não é o gênero no foco desse trabalho. Mas, ressaltamos que o termo ficção científica é ainda o mais utilizado e se comporta de forma coerente com as obras que lhe são atribuídas.
Esses gêneros andaram juntos quando foram dados os primeiros passos para suas definições modernas, apesar de a fantasia ser um gênero bem mais antigo que a ficção científica. Os primeiros livros de Julio Verne e H.G Wells eram tratados como fantasia científica, uma ficção fantástica (aos olhos de sua época) que traziam a ciência como elemento de verossimilhança.
David Allen em No Mundo da Ficção Científica (1973) considera a fantasia como um subgênero da ficção científica, argumentando que os elementos fantásticos da fantasia são explicados através da magia, e esta por sua vez se comporta como uma ciência desconhecida ou não explicada.
Compreender a fantasia, não só como gênero literário, mas como uma instituição do pensamento criativo humano, remonta ao entendimento da própria imaginação. Como argumenta Laplantine (1996) o imaginário está intimamente ligado ao simbólico em uma relação de interdependência. O imaginário, segundo ele, é um estímulo criativo que produz relações irreais, porém baseadas no real.
Tratar a origem da ficção se tornaria um trabalho deveras demorado, uma vez que há possivelmente outros trabalhos no âmbito da teoria literária que já o fazem. Mas se faz necessário compreender que a ficção, e o pensamento fantasioso, apresentam raízes antigas que demarcam inclusive o surgimento de uma ciência, a História.
No mundo helênico, durante período micênico se desenvolve a mitologia fantástica dos deuses gregos. A sabedoria era aqui baseada no mythos, até ser contrariada séculos depois pelas figuras de Heródoto e Tucídides, percussores da investigação histórica.
Contudo, a conjectura divina grega sobreviveu até os dias de hoje, porém não com o caráter de religião, mas de mitologia. Da mesma forma se deu o processo das crenças nórdicas, que passado a cristianização da Escandinávia, foi se caracterizando como mitologia, sendo uma das mais influentes na literatura fantástica moderna inaugurada por Tolkien e Lewis.
A transição de religião para mito parece ser um fenômeno cultural de imposição, mas felizmente não de esquecimento, uma vez que a própria mitologia nórdica é ainda carregada no seio cultural dos países do extremo norte europeu.
A Idade Média, período em que a religião cristã invadiu as incumbências dos estados se anexando a ele, é ainda hoje marcadamente uma influência da literatura da fantasia. O medievalismo como um cenário, ou características predominantes dos espaços é extremamente forte tanto em O Senhor dos Anéis, do início da segunda metade do século XX, com é sentindo também em As Crônicas do Gelo e do Fogo de G.R.R Martin e em Harry Potter de J.K Rowling, ambas da década de 1990.
Sendo assim, a fantasia moderna vem se caracterizando como uma mitologia moderna retida de referências seculares europeias. É válido aqui lembrar que Tolkien iniciou sua obra com o desejo de que ela se estabelecesse como uma mitologia para a Inglaterra, uma vez que as lendas dos cavaleiros da Távola Redonda não cumpriam por completo essa função. Então, seja provável que em um tempo futuro, as pessoas percebam as atuais produções literária da fantasia como a mitologia de nossa época. As Crônicas de Shannara ou o Ciclo da Herança poderão ser vistas como a Odisséia ou as Eddas de nosso tempo.
O que aqui propomos é levantar uma quantidade suficiente de elementos visuais presentes na literatura fantástica que corrobore a ideia de que o gênero está representado de forma imagética e poética em um estilo musical, o Power Metal. Portanto cabe-nos aqui compreender primeiramente como opera esse gênero musical, e verificar a existência de uma conexão de influências com o gênero literário abordado.
Power Metal: entre dragões e guitarras
Não se sabe ao certo qual a foi a derradeira primeira banda do gênero, mas o que é por certo é que as influências do Metal são antigas, e remontam do Blues ao Rock’n Roll. Entretanto sabem se dos percussores do Metal, que foram sem dúvida, os grupos, Led Zepelin, Black Sabbath e Deep Purple, seguidos por Motorhead e Judas Priest. Grupos esses que eram aderentes a outros gêneros enraizados do Rock. Isso mostra como o Metal tem suas origens cravadas nos subgêneros do Rock clássico, já que as bandas citadas eram aderentes aos seguintes estilos: Hard Rock, Rock progressivo, Rock Psicodélico, Folk Rock, Blues Rock.
A fúria e gritos encontrados no Metal podem ser sem dúvidas, originadas do subgênro Punk Rock, atitude essa muito bem introduzida pela já citada Motorhead. O movimento Punk acabou enfraquecendo muito dessas bandas já consagradas do Metal. Grupos como os Ramones e Sex Pistol chegavam ao auge. Entretanto, no fim da década de 70, eis que surge o movimento “Nova Onda do Heavy Metal Britânico” que se espalhou pela Europa.
Buscando peso e velocidade com mais característica ‘metálicas’, a Iron Maiden liderou o movimento que pode ser considerada a revolução no Metal, gerando influencia internacional na tribo dos headbangers.
Nesse contexto, são diversificados ainda mais gêneros do Metal. Como o Glam Metal, introduzido com ênfase pela Mötley Crüe. Mas, a maior invasão de gênero “metaleira” se deu com Trash Metal. Os grupos Anthrax, Slayer, Megadeth e Metallica iniciaram esse estilo, rápido e pesado. Esses eram o Big Four. Ao mesmo tempo, o Black Metal e Death Metal também ganhavam popularidade, como as bandas Possessed e Sepultura, que possuem origens no Trash e no Punk Rock.
Ainda na mesma época, o Power Metal teve sua entrada, com Blind Guardian e Helloween, que tinham em suas letras temas com aventuras épicas e influências da literatura fantasiosa, como e J.R.R Tolkien e C.S Lewis. Não coincidentemente duas bandas germânicas, de um país onde as origens remontam o início do compartilhamento das crenças nórdicas.
Mas o que caracteriza esse estilo e quais influências tanto na música como na composição foi pesquisado pelo antropólogo Sam Dunn em um episódio de seu documentário, Metal Evolution. O Power Metal nasce e é extremamente influente nos países de raízes vikings, e as pessoas que as escutam buscam demonstrar sua adoração as tradições nórdicas e medievais.A música do Power Metal se caracteriza pela velocidade, riffs de guitarra que influenciada pela música clássica europeia. Dessa forma tanto a tradição cultural como musical são pilares na estilística desse gênero. As bandas surgem como uma resposta à queda de sucesso das bandas mais tradicionais do Heavy Metal durante a década de noventa, curiosamente na mesma época em que surgem as obras de fantasia moderna mais conhecidas, de G.R.R Martin e Rowling.
Entretanto, o folclore europeu como base da composição surge ainda com Ronnie James Dio na banda Rainbow, como relata no documentário de Dunn, fazendo uso de lendas e da mitologia medieval. E Rob Halford, de Judas Priest, invoca o cantor melódico e agudo que também demarcam o Power Metal.
Dessa forma, o gênero surge como um aperfeiçoamento de alguns elementos do Heavy Metal tradicional. Porém, o que destaca o Power Metal é seu caráter melódico e épico.
Em um artigo publicado no site especializado Whiplash, são destacados alguns dos álbuns mais influentes no gênero do Power Metal. Dentre eles estão Winterheart’s Guild (2003), do grupo finlandês Sonata Arctica, Crimson Thunder (2002), dos suecos Hammerfall, Symphony of Enchanted Lands (1998), do grupo italiano Rhapsody, Keeper of the Seven Keys (1987/1988), da banda alemã Helloween e também Nightfall in Middle Earth (1998). Com exceção dos italianos da Rhapsody, todos são grupos de origem escandinava.
O que destaco é justamente este último, Nightfall in Middle Earth, da banda Blind Guardian é considerada por muito como o Magnum Opus do grupo. O álbum conceitual fora totalmente composto na base do livro Silmarillion de Tolkien. Abaixo, destaco a trilha sonora do referido álbum.
A capa traz a representação de Beren e Lúthien no trono de Morgoth |
1. "War of Wrath" - 1:50
2. "Into the Storm" - 4:24
3. "Lammoth" - 0:28
4. "Nightfall" - 5:34
5. "The Minstrel" - 0:32
6. "The Curse of Fëanor" - 5:41
7. "Captured" - 0:26
8. "Blood Tears" - 5:23
9. "Mirror Mirror" - 5:07
10. "Face the Truth" - 0:24
11. "Noldor (Dead Winter Reigns)" - 6:51
12. "Battle of Sudden Flame" - 0:44
13. "Time Stands Still (At the Iron Hill)" - 4:53
14. "The Dark Elf" - 0:23
15. "Thorn" - 6:18
16. "The Eldar" - 3:39
17. "Nom the Wise" - 0:33
18. "When Sorrow Sang" - 4:25
19. "Out on the Water" - 0:44
20. "The Steadfast" - 0:21
21. "A Dark Passage" - 6:01
22. "Final Chapter (Thus Ends...)" - 0:48
O álbum obtém sucesso em criar uma atmosfera medievalesca, uma vez que efetua um hibridismo sonoro com os riffs de acordes pesados tradicionais do Trash Metal, mas usando corais em algumas canções, perpassando uma sensação quase clerical e melodias orquestrais, como na faixa Nightfall e Mirror Mirror. A voz de Hansi Kürsch que desce as oitavas extremas numa mesma estrofe colabora para criar o ambiente épico nas canções, junto os riffs melódicos que por vezes servem de intersecção entre cada conjunto de versos das letras.
Outro elemento curioso do álbum são algumas faixas curtas que intercalam as canções mais longas. War of Wrath inicia como uma trilha de um ambiente de guerra, com gritos e espadas trincando em batalha na Guerra da Ira. Em seguida dá-se inicio um diálogo entre Sauron e seu mestre Morgoth, em que este libera Sauron de seus serviços diante de sua derrota em Angband.
“Ali Morgoth finalmente ficou acuado, e mesmo assim continou sem coragem. (...) Foi então amarrado com a corrente Angainor que usara no passado; e sua coroa de ferro foi batida para servir-lhe de coleira; e dobraram sua cabeça sobre os joelhos.” *Trecho Da Viagem de Eärendil e da Guerra da Ira.
A segunda faixa curta é Lammoth, onde se ouve o longo grito de Melkor (Morgoth) quando Ungoliant lhe ameaça pedindo as Silmarilli. The Minstrel é uma pequena balada de bardo que recita um trecho difícil de identificar, mas que possivelmente se refere ao menestrel Maglor sobre A Queda dos Noldor. Para uma análise mais profunda das letras, indico este artigo.
Para concluir, o que busquei fora fornecer um panorama da fantasia dentro da música, usando Blind Guardian como primordial exemplo. Mas cabe destacar que eles não foram os primeiros. Mesmo Black Sabbath já usava referencias mitológicas e religiosas em suas letras, e o Heavy Metal como um todo está constantemente referenciando obras literárias. Mas Blind Guardian se sobressai por fornecer uma incrível obra que demonstra a adaptabilidade da literatura fantástica e sua conversão em outra linguagem artística, a música.
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